Será alucinação? Sobre a vinda da Ministra Tereza Cristina na ESALQ/USP

Na semana passada, a manifestação de um grupo de formandos da ESALQ/USP diante da escolha da Ministra Tereza Cristina como paraninfa da turma, ganhou grande repercussão. 

Uma pergunta beira esse caso, será apenas uma crítica cheia de alucinação

Nós, do Laboratório de Educação e Política Ambiental – Oca/ESALQ – USP, com uma atuação de mais de 30 anos no campo socioambiental, colocamos nossa opinião abaixo.

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Trabalho de campo do Mosaico Educoflorestal Agroecológico na E.E.C.F de Itatinga

A questão que se apresenta é de magnitude mundial e não uma crítica simplista. Com as mudanças climáticas existe uma previsão de prejuízo de pelo menos 60 trilhões de dólares (75% do PIB Mundial) pela liberação de metano no Ártico para as próximas décadas, afetando a vida de milhões de pessoas e agravando a extinção em massa da biodiversidade do planeta. Em 30 anos, desmatou-se ¼ de tudo que já foi desmatado em 10 mil anos (MIDDLETON, pg. 346, 2013 por MARQUES, 2018). Tornam-se improdutivas 12 mil ha de terra por ano (UNCCD, 2014). 

A questão da fome está longe de ser resolvida. Ela não é uma condição da falta de produção/produtividade, mas sim condição de um modelo de sistema global em que 800 milhões de pessoas passam fome, enquanto, simultaneamente, 2 bilhões vivem em sobrepeso (FAO, 2019;BELIK, 2011). Estamos falando de um modelo de alta produção que, além de ter uma distribuição bastante desigual, desperdiça  de tudo que é produzido às custas de intensa degradação ambiental. Um modelo no qual quem produz o alimento é quem mais passa necessidade – cerca de 70% das pessoas com fome estão no meio rural, com grande desigualdade social.

O Agronegócio não é apenas um conjunto de técnicas, ele é um projeto de sociedade.

A política do governo atual tem sido no sentido de reforçar a falsa ideia de que é preciso escolher entre conservar e produzir, incentivando o desmatamento (não só através de discursos, mas também retirando políticas de fiscalização, se afastando de parceiros internacionais de preservação ambiental, cortando recursos orçamentários, extinguindo órgãos, enfraquecendo a participação da sociedade civil).

Além disso, tem mais agrotóxicos aprovados do que dias de mandato (a atual gestão autorizou mais de 400 produtos a circularem no mercado nacional), um contexto onde o relatório da ANVISA, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, apresenta que metade dos alimentos analisados contêm resíduos de agrotóxicos (51%), mesmo analisando apenas 270 das 499 substâncias liberadas!  

Não trata-se, portanto, de uma crítica irresponsável ou sem fundamentos: é um chamado de urgência. Um grito de chamado à ação e à mudança.

A Agroecologia vem nesse sentido, apontando novas alternativas e caminhos e, ao mesmo tempo, trazendo os saberes e conhecimentos tradicionais, promovendo relações mais justas, equitativas, inclusivas e sustentáveis. Em um dos maiores estudos sobre a perspectiva da produção orgânica, o relatório da ONU (2010) aponta para o aumento aproximado de 79% na produtividade da agricultura. O estudo aconteceu em 57 países, cobrindo 286 projetos, sobre cerca de 37 milhões de hectares. Um desses exemplos de “sucesso” ocorreu na Tanzânia (em locais conhecidos como “Deserto da Tanzânia”), que através de técnicas de reflorestamento 350 hectares de terra foram recuperadas, aumentando a renda familiar em cerca de 500 dólares por ano.

No Brasil temos o exemplo da Política e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO e PLANAPO).

Estes foram reconhecidos internacionalmente por suas proposições e contribuição aos processos de construção, especialmente de redes e coletivos ligados ao campo da Agroecologia. Nelas estão presentes metas como: crédito, seguro e política de garantia de preços; fortalecimento das redes de agroecologia;  insumos para a produção orgânica e agroecológica; redução do uso de agrotóxicos e controle da qualidade da produção orgânica. Políticas públicas comprometidas com estes valores não somente materializam processos de transição no sistema de produção alimentícia do Brasil, mas também aproximam a sociedade civil do debate sobre a soberania alimentar e democracia política, além de contribuir para a conservação e restauração ecológica.

Lidar com esse cenário de crise ambiental e climática (que, na verdade, é uma crise civilizatória) não é uma tarefa que tem uma resposta simples. É complexa e precisa de muitas mãos. Porque não se trata apenas de criar novas tecnologias ou técnicas sustentáveis, mas sim mudanças nos valores e atitudes, em que a diversidade e a empatia sejam horizontes

A universidade deve não apenas respeitar, mas expressar e fortalecer a diversidade, a pluralidade, estando de fato a serviço da sociedade e de seus interesses. E isso precisa se refletir em seus espaços físicos, currículo, acessibilidade, permanência, ensino, pesquisa e extensão e, também, naqueles que homenageia.

A Universidade deve caminhar investindo em projetos que promovam o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares e de extensão, como parte de um diálogo de conhecimentos, que propiciem a construção de comunidades, bairros e regiões, nos enfrentamentos da crise global a partir das questões locais. Precisamos apontar na direção do desenvolvimento de uma economia local e solidária, uma educação emancipatória e em sistemas integrados entre cidade e rural, entre produção e conservação ambiental

A Esalq é muito mais do que o agronegócio e sua diversidade deve ser representada e fortalecida. 

Tudo isso é projeto, não só de universidade ou país, mas de sociedades. Sociedades verdadeiramente sustentáveis, nas quais o ser humano volte a se identificar como integrante absoluto da natureza. 

Referências Bibliográficas

ANVISA (2019). PROGRAMA DE ANÁLISE DE RESÍDUOS DE AGROTÓXICOS EM ALIMENTOS – PARA. Disponível em <http://portal.anvisa.gov.br/documents/111215/0/Relat%C3%B3rio+%E2%80%93+PARA+2017-2018_Final.pdf/e1d0c988-1e69-4054-9a31-70355109acc9>.

Belik, W. (2003). Perspectivas para segurança alimentar e nutricional no Brasil. Saúde e Sociedade, 12(1), 12–20. https://doi.org/10.1590/S0104-12902003000100004

Belik, W. (2011). Um bilhão de famintos. Retrieved June 3, 2017, from https://www.cartacapital.com.br/educacao/um-bilhao-de-famintos

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De Schutter, O. (2012). Agroecology, a Tool for the Realization of the Right to Food. In Agroecology and strategies for climate change (pp. 1–16). Springer.

De Schutter, O. (2014). UN Special Rapporteur on the right to food. Report on Agroecology and the Right to Food. Disponível em <http://www.srfood.org/images/stories/pdf/officialreports/20110308_a-hrc-16-49_agroecology_en.pdf>

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LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 494 p. 

MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Editora da Unicamp, 2018.

ONU (2018). ONU pede mudança nos padrões de consumo para evitar seca e desertificação. Disponível em <https://nacoesunidas.org/onu-pede-mudanca-nos-padroes-de-consumo-para-evitar-seca-e-desertificacao/>

SAMBUICHI, R. H.R. et. al A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil : uma trajetória de luta pelo desenvolvimento rural sustentável / organizadores: Regina Helena Rosa Sambuichi … [et al.]. – Brasília : Ipea, 2017. 463 p. : il., gráfs. color.

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