Em tempos de pandemia e vulnerabilidades no Brasil, precisamos falar sobre saneamento!

Os últimos tempos têm sido marcantes nas questões socioambientais do Brasil, vivenciamos queimadas criminosas na Amazônia e a “fumaça preta” que invadiu São Paulo em plena luz do dia. Vimos chuvas intensas nos centros urbanos e consequentes alagamentos sobre antigos rios que viraram avenidas de concreto. Também tivemos a destruição que a lama da mineração trouxe a Mariana e Brumadinho. Agora é a vez da pandemia do COVID-19 assombrar os grandes centros pelo mundo. Todos esses eventos extremos têm ocorrido a cada dia com mais frequência por todo o planeta, e não atingem igualmente todas as pessoas e seres vivos: Os mais vulneráveis (excluídos socialmente pelo sistema capitalista) são aqueles que sofrem primeiro e com mais intensidade estes efeitos. Mais do que outros mundos possíveis, é preciso pensar em outros mundos necessários, e urgentemente.

 

Comunidade de pescadores do Tanquã em Piracicaba/SP. Foto: Bruno Fernandes

Neste contexto queremos provocar uma questão que tem sido ventilada no debate público: o saneamento básico (uma mazela antiga no Brasil). Em um momento de crise sanitária como esta que vivemos com a pandemia, o acesso a serviços de saneamento são fundamentais na manutenção da saúde pública, pois além da atual situação de calamidade temos diversas outras doenças de veiculação hídrica que ocorrem frequentemente no país, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade.

No Brasil temos o grande desafio de buscar a universalização do sistema, atualmente muitos municípios e comunidades carecem deste acesso, especialmente os de menor orçamento e distantes dos grandes centros econômicos do país. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que dos municípios brasileiros apenas 55,2% possuem acesso a serviços de saneamento a partir de redes coletoras (independente da extensão dessa rede, do número de domicílios ligados ao sistema de coleta e da qualidade do tratamento do esgoto coletado) havendo também uma grande disparidade entre municípios do sudeste e região norte.  

 Se recortarmos a realidade do saneamento no país de forma detalhada veremos que para as comunidades rurais e periféricas, denominadas comunidades isoladas, esta questão é ainda mais desafiadora. Em comunidades urbanas, por exemplo, 31% das residências ainda utilizam fossas rudimentares ou sépticas (convencionais), e 5% possuem lançamentos de seus efluentes a céu aberto. Estas questões não são exclusividade de municípios de menor poder econômico, pois as vemos também em grandes metrópoles como a cidade de São Paulo.

No meio rural estas questões também são bastante relevantes. Com o êxodo rural e consequente expansão demográfica dos centros urbanos, as políticas públicas voltadas ao bem estar do campo ficaram em segundo plano. Dados do IBGE apontam que no Brasil apenas 8% dos domicílios rurais estão conectados a redes de esgoto, e ainda 13% não possuem nenhum tipo de tratamento. Se pensarmos que boa parte destas consomem águas dos poços artesianos, temos de fato um sério problema de saúde pública, especialmente com doenças de veiculação hídrica como: amebíase, giardíase, gastroenterite, febre tifoide e paratifoide, hepatite infecciosa, cólera, entre outras doenças e verminoses. Outro fator a se destacar é que existem poucas informações sobre mapeamentos e diagnósticos, bem como a implementação de projetos e estruturas de baixo custo, principalmente a nível municipal, sendo necessário debater estas questões como planejamento estratégico e construção de políticas públicas estruturantes.

Atualmente os investimentos no âmbito do saneamento estão quase sempre atrelados a grandes obras do campo da construção civil, em formato de investimentos públicos ou parcerias com o setor privado (que tem sido o grande debate sobre as propostas de privatização do setor). Portanto, questiona-se: como promover acesso a este serviço, especialmente as comunidades mais vulneráveis? (para qual o modelo centralizado no capital financeiro não tem atendido essas demandas). Se mostra clara então a necessidade de implementação de outros modelos tecnológicos e econômicos, e também é imprescindível o papel que a universidade pública tem para atuar nas soluções nesta problemática.

A tecnologia social (TS) apresenta-se como alternativa ao modelo de desenvolvimento atual, no qual o modelo tecnológico convencional é fruto da produção capitalista, reafirmando este sistema ao produzir em larga escala, tornando outras tecnologias obsoletas, e deixando ainda milhões em todo o planeta sem acesso aos recursos básicos a sobrevivência. Em suma, no sistema atual a tecnologia contribui para produção das desigualdades sociais e dos impactos ambientais. A TS se materializa resgatando saberes populares e desenvolvendo processos e produtos com baixo custo, que resolvam as demandas locais e atuem na solução de vulnerabilidades, almejando a transição para outro modelo organizativo, político e econômico das comunidades, pautado principalmente pela solidariedade e a criatividade popular. 

E nas questões do saneamento para as comunidades isoladas, como a tecnologia social pode atuar? Atualmente existem diversas iniciativas no Brasil, tanto em âmbito de algumas instituições do poder público (como a EMBRAPA), como também de iniciativas da sociedade civil (ONG´s, empreendimentos solidários e pesquisas universitárias). Têm-se produzido sistemas e estruturas de baixo custo e alta eficiência de tratamento junto às comunidades, que viabilizam a coleta, tratamento e disposição de efluentes domésticos, dos resíduos sólidos ou ainda também iniciativas para aumentar a disponibilidade hídrica (como a captação de água da chuva, ou cisternas, por exemplo).

Cada estrutura é única, pois é construída a muitas mãos, e pode atender desde uma residência até os vários lares que compõem uma comunidade. Todo este trabalho de planejamento depende da viabilidade sociocultural, operacional, econômica e ambiental, e cada uma dessas dimensões deve ser levada em conta com suas potencialidades e desafios. Para cada estrutura a dimensão do processo é importante, por isso valoriza-se o trabalho com mutirão, pois além de todo o coletivo ter acesso ao processo de aprendizagem (e possibilitar a replicação deste), o mesmo se apodera do desenvolvimento local de sua comunidade.

Importante citar também o papel da formulação de políticas públicas estruturantes neste contexto, pois a partir delas é possível ampliar o raio de atuação ou a escala organizativa. Com a formulação de leis, programas ou ainda incidência em espaços de planejamento estratégico (como o plano diretor municipal) é possível mapear e diagnosticar os territórios, definir metas e ações e destinar recursos nos processos de transição. Evidentemente que para a TS estar presente nesta escala, seus valores democráticos e participativos não podem ser deixados de lado. Política pública é fruto de construção a muitas mãos.  

E a universidade pública, como pode contribuir com a pesquisa e extensão universitária? Neste movimento de construção de uma universidade mais democrática repensar as diretrizes na produção de pesquisa de campo e extensão universitária é também se abrir ao conhecimento popular presente nas comunidades. Ter a certeza que não levaremos um pacote de verdades, mas possibilidades de construção conjunta que podem fortalecer essa relação entre o empírico e o retórico com a vivência, os elementos do cotidiano, e os saberes geracionais que compõem a cultural local.

Neste sentido construir tecnologias sociais voltadas ao saneamento para comunidades isoladas é principalmente um processo educador ambientalista, uma aprendizagem no diálogo da diversidade, e desta forma o Laboratório de Educação e Política Ambiental (Oca) pode afirmar a partir da extensão universitária e das experiências educativas já realizadas os potenciais para ações estratégicas que essas construções podem trazer, pois quando o planejamento e o trabalho faz sentido ao coletivo, especialmente no contexto da comunidade, pode ser o caminho para apropriação dos processos e estruturas construídas, bem como a participação ativa e engajada da comunidade na temática que objetive também a incidência em políticas públicas.  

Em tempos de pandemia é fundamental reconhecer as vulnerabilidades, e principalmente ver pela questão do saneamento ambiental uma possibilidade de começar a promover justiça socioambiental no Brasil, afinal a pandemia irá passar em algum momento, mas nossas mazelas irão permanecer, e agora, mais do que nunca será preciso enunciar: Outro mundo é necessário!  

 

Referências Bibliográficas

DAGNINO, R. Tecnologia Social: Contribuições conceituais e metodológicas. Campina Grande: EDUEPB, 2014.

OCA. O “Método Oca” de Educação Ambiental: Fundamentos e Estrutura Incremental. in Dossiê Temático Fundamentos da Educação Ambiental.
Ambiente e Educação. Universidade Federal do Rio Grande (FURG). vol 21, n. 1. 2016.

REDE DE TECNOLOGIA SOCIAL – RTS (Brasil) (Org.).
Tecnologia Social e Desenvolvimento Sustentável: Contribuições da RTS para a formulação de uma Política de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação – Brasília/DF : Secretaria Executiva da Rede de Tecnologia Social (RTS), 2010. 98 p.

Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento / Fundação Banco do Brasil – Rio de Janeiro: 2004.

TONETTI, A. L, 1973 – Tratamento de esgotos domésticos em comunidades isoladas:
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Francisco José Peña y Lillo Madrid, et al. — Campinas, SP.:
Biblioteca/Unicamp, 2018.